terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Daniel, Babilônia e a arqueologia

As relações obscuras entre os cativos judeus na corte babilônica nem sempre são compreendidas. Diante disso, alguns mitos se formaram em torno da vida do profeta bíblico Daniel e seus companheiros. Sob o ponto de vista da arqueologia, o doutor Rodrigo Silva, professor do Unasp e pesquisador, analisa as entrelinhas desse período de transição na história de Judá, em entrevista concedida ao jornalista e professor Ruben Holdorf.

Conexão JA: Apenas Daniel, Hananias, Misael e Azarias chegaram à condição de servidores "judeus" no palácio de Nabucodonosor ou eles se destacaram, diante de outros cativos, pela fidelidade ímpar?
Rodrigo Silva: Eu particularmente creio que houve outros judeus. Veja, Nabucodonosor invadiu três vezes Jerusalém. Na primeira, em 605 a.C. (na qual foram levados alguns jovens judeus para a Babilônia, talvez outros além de Daniel e seus companheiros, jovens escolhidos a dedo), ele levou os objetos do templo. Na segunda, ele voltou irado porque Jeoaquim havia se aliado ao Egito. Isso foi em 597 a.C. Nessa oportunidade, ele levou outros utensílios do templo e cerca de dez mil cativos – não só jovens, escolhidos a dedo como na primeira leva – mas gente o trabalho escravo. Na terceira, em 586 a.C., ele destruiu a cidade e o templo. Por isso, creio que o destaque de Daniel e de seus amigos se deu por causa da fidelidade deles.

Conexão JA: Qual era o parâmetro de ciência exigido por Nabucodonosor diante da erudição de Daniel e de seus amigos? Em que fontes eles se abasteciam?
Rodrigo: Nas escolas da Caldeia se ensinava literatura babilônica, o que exigia dos alunos que aprendessem acadiano (língua local) e aramaico (língua da diplomacia internacional). Eles também tinham de aprender técnicas de magia (daí a presença dos magos). O termo “caldeu”, quando usado de maneira técnica, se refere ao decifrador de mapas astronômicos, tanto para fins de astronomia, quanto para fins de previsão astrológica. Então, tinham que estudar isso também.

Conexão JA: No fim dos 70 anos de cativeiro na Babilônia, por que Daniel não voltou para Jerusalém com os cativos?
Rodrigo: Tudo indica que ele permaneceu no reino de Dario. Talvez por conta própria ou por estar muito velho. Seus parentes já estavam mortos. Ele não os conhecia mais. Não havia laços de parentesco fora da Babilônia. Era mais seguro para um velho como ele ficar ali.

Conexão JA: Apesar da notória fama de Daniel e da superioridade em sabedoria, os magos e encantadores se apresentaram primeiro diante de Nabucodonosor para tentar desvendar seu sonho. Teriam eles omitido o caso a Daniel e seus amigos com a intenção de conseguir o favor do rei?
Rodrigo: É que Daniel ainda não era, nessa época, do grupo de elite dos magos ou astrônomos do rei. Era um aprendiz. Como um brilhante aluno de Jornalismo que ainda não faz parte da chefia de um jornal, mas que por erros dos "mais experientes" acaba “pagando o pato”, como se o governo - devido a algum problema com jornalistas formados – aprovasse um decreto que negasse a todo jornalista o direito de regulamentação da profissão. Foi o que aconteceu com Daniel.

Conexão JA: Se o rei conhecia as diferenças entre Daniel, seus amigos e os caldeus, por que insistiu com eles na possibilidade de interpretação do sonho e por que decretou a morte de todos, inclusive dos judeus?
Rodrigo: Soberanos têm memória curta para certas coisas. Daniel, a princípio, foi só um jovem inteligente, nada mais que isso. O Sílvio Santos pode ficar impressionado com a inteligência de um aluno de Jornalismo que conseguiu entrevistá-lo rapidamente para um trabalho de faculdade. Mas isso não garante que se lembrará dele daqui a dois anos. Foi apenas uma entrevista de poucos minutos. Não ficou na memória de um homem que lida com gente diferente todos os dias.

Conexão JA: O fato de eles estruturarem as primeiras casas bancárias auxiliou na mudança de visão por parte dos babilônios e outros povos? A permanência de muitos na Babilônia depois de cumpridos os 70 anos de cativeiro, inclusive de Daniel, reforça a tese de que a situação se reverteu em favor dos judeus?
Rodrigo: Sim, a situação se reverteu com o tempo. Os judeus se destacaram com o comércio. Como, aliás, aconteceu também quando foram para a Europa, e mesmo depois do holocausto nazista. Prova disso, é que Nova York é quase toda deles. Não estou seguro de que os judeus fundaram os primeiros bancos. Já ouvi isso, mas nunca encontrei uma sólida confirmação histórica ou arqueológica. Ademais, a moeda foi inventada pelos gregos no oitavo ou sétimo século antes de Cristo. Logo, não sei se nessa época o uso de moedas era corrente em Babilônia.

Conexão JA: Em casos de invasão relatados nos anais da História, os dominadores buscavam eliminar seus oponentes, principalmente as lideranças. Como explicar a permanência de Daniel em uma corte invasora e ainda exercendo uma relevante função?
Rodrigo: Nem sempre os dominadores matavam as lideranças. Jeoaquim foi mantido por Nabucodonosor com uma pensão vitalícia. Ademais, Daniel era de sangue real, mas não era para ser "rei" de Judá. Era um jovem inteligente e esses eram aproveitados. No Egito, temos relatos de que não-egípcios trabalharam como funcionários de alto escalão de faraó.

Conexão JA: Daniel mudou seu regime alimentar com o passar do tempo? Como explicar as diferenças entre sua decisão de não se contaminar com as iguarias reais, expressa no capítulo 1, o verso 3 do capítulo 10 e as obrigações rituais da religião naquilo que se refere ao uso da carne? Este verso se concilia com os versos 5 e 6 do capítulo 9, ou se trata de uma informação advinda de outro contexto?
Rodrigo: Não creio, para começo, que Daniel fosse vegetariano. Ele não comeu da carne do rei por uma questão ritual. No hebraico, existem verbos que só admitem Deus como sujeito. Nós não temos isso em português. Por exemplo, o verbo bará (criar) só admite Deus como sujeito e mais ninguém. De igual modo, o verbo wayeman (determinou-lhes) também não admite outro sujeito senão Deus, mas aqui ele aparece tendo, estranhamente, o rei como sujeito. "E determinou-lhes Nabucodonosor" a comida. Ora, no Éden foi Deus quem determinou o que o homem ia comer. Por isso, Daniel repete o cardápio do Éden, para mostrar que não se submeteria às exigências do rei.

Por Ruben Holdorf, jornalista e professor de Comunicação Social no Unasp, campus Engenheiro Coelho, SP (dargan_holdorf@hotmail.com)